Ainda que aos trancos e barrancos, com algumas marchas e contramarchas, o Supremo Tribunal Federal tem sido eficaz em conter os arroubos autoritários e os arreganhos antidemocráticos do governo Jair Bolsonaro.
O STF, no balanço geral, tem mostrado altivez em face dos notórios pendores autocráticos do chefe do Executivo, como na recente suspensão de portaria que vedava dispensa de trabalhadores que não querem se vacinar.
Já o Tribunal Superior do Trabalho (TST), por outro lado, tem sido, sem a menor sombra de dúvida, a Corte mais dócil à ideologia bolsonarista.
Bolsonaro não escolheu Maria Cristina Peduzzi para presidir a Justiça do Trabalho, pois esse papel não lhe cabe constitucionalmente; mas se pudesse fazê-lo, certamente seria uma escolha perfeita, pois ambos estão em sintonia fina sobre a função da legislação do trabalho na sociedade contemporânea.
Basta cotejar, na semana que passou, a entrevista que Peduzzi concedeu ao JOTA, com a nova proposta que uma certa “comissão de altos estudos trabalhistas” do Executivo apresentou para supostamente “modernizar” a legislação trabalhista brasileira.
A harmonia de pensamento e ideologia entre o governo federal e a presidente do TST é notável.
Vejamos primeiro a entrevista referida, conduzida pela repórter Juliana Castro.
Indagada inicialmente sobre o que pensa da reforma trabalhista, a presidente do TST ofereceu ao leitor do JOTA a seguinte apreciação:
“Acho até engraçado quando falam que a reforma não trouxe emprego porque a geração de emprego depende de múltiplos fatores”.
A presidente do TST não deveria achar isso “engraçado”.
A reforma trabalhista (que ela apoia com entusiasmo, como se depreende de sua entrevista) foi justificada politicamente para “gerar empregos”.
Essa era uma premissa invocada oficialmente por todos que apoiaram a medida.
Consta do relatório do respectivo processo legislativo em ambas as casas do Congresso.
Tratava-se, evidentemente, de um grande engodo, pois tal reforma não criou sequer um mísero emprego; ao contrário, o desemprego disparou desde então (sem contar o fato de que ali por 2009 havíamos atingido o menor índice de desemprego da série histórica “com a mesma CLT”).
Então, não há nada de “engraçado” nisso, mas sim de triste e lamentável: o discurso falacioso de que a reforma trabalhista geraria empregos deveria encontrar na presidente do TST motivo de repúdio e protesto.
No entanto, não se vê na presidente do TST um pingo de juízo crítico sobre essa reforma malfeita e desastrada, mas apenas aplausos idênticos àqueles que ora dominam a escola pseudoliberal da economia brasileira, no nível “Paulo Guedes” de proficiência acadêmica.
A sagaz repórter deste JOTA insistiu e perguntou à presidente do TST: “quais são os aspectos negativos da reforma trabalhista?”.
A presidente Peduzzi, impávida, responde muito assertivamente: “Não me ocorre nenhum aspecto negativo”.
Vejam só, estamos diante de uma lei altamente controversa, mas perfeita para a presidente Maria Cristina Peduzzi.
Lembremos: a malsinada reforma trabalhista esvaziou completamente a negociação coletiva ao permitir acordos individuais para quase tudo, destruiu o sistema de financiamento sindical sem nada colocar no lugar, criou várias “válvulas de escape” do sistema de proteção ao emprego, dificultou o acesso ao Judiciário trabalhista e, apesar de tudo, a presidente da Justiça do Trabalho não vê nada de ruim nisso.
E ainda sustenta sua opinião com a seguinte platitude, digna da melhor sociologia de botequim: “A reforma trabalhista, como outras leis que vieram, acompanharam as necessidades da revolução tecnológica 4.0”.
Perguntada sobre quais seriam os “avanços” promovidos pela reforma trabalhista, a presidente do TST fez uma defesa enfática da norma; porém, ao analisá-la, revelou uma grande confusão de conceitos do Direito do Trabalho, misturando alhos com bugalhos.
Veja-se essa passagem: “Nós tínhamos aqui a estabilidade legal, mas a reforma deixou clara a flexibilização das jornadas, que está envolvida com a questão do alcance da negociação coletiva”.
Bem, francamente, não entendi o que a ministra quis dizer com “estabilidade legal”.
Certamente não é a estabilidade no emprego, abolida em 1966.
A alegação de que a “flexibilização das jornadas” está relacionada ao “alcance” das negociações coletivas não faz sentido algum: a reforma trabalhista simplesmente permitiu toda e qualquer compensação de jornada, incluindo banco de horas, SEM a participação dos sindicatos.
Esta é a grande incoerência da reforma trabalhista: concebida supostamente para prestigiar a negociação coletiva, a norma esvazia o seu conteúdo ao elastecer as hipóteses de negociação individual, especialmente da jornada de trabalho.
Portanto, a presidente Peduzzi ignora a contradição lógica imanente da reforma.
No que diz respeito ao trabalho de motoristas e entregadores intermediados por aplicativos, como era de se esperar, a presidente, remando contra a jurisprudência trabalhista prevalecente em todo o mundo civilizado, diz que sua “impressão” é “no sentido de que é uma forma realmente nova de prestar o trabalho em que não se identifica de imediato elementos que caracterizem o vínculo de emprego”.
Na mesma semana que passou, o governo Bolsonaro apresentou um relatório de um certo “Grupo de Altos Estudos do Trabalho”, desenvolvido no âmbito do Ministério da Economia, prevendo a alteração de 330 dispositivos legais e inclusão de outros 110, que têm, em seu conjunto, o claro objetivo de restringir direitos trabalhistas.
Não é de surpreender que a primeira “inovação” do tal projeto é vedar o reconhecimento de vínculo de emprego entre motoristas/entregadores e “plataformas digitais” (que nada mais são do que empresas que contratam trabalho por um aplicativo, não custa lembrar).
Além disso, libera o trabalho aos domingos sem qualquer restrição ou necessidade de negociação coletiva, restringe a substituição processual a associados do sindicato (medida contrária à Constituição), permite quitação total do contrato extrajudicialmente (tolhendo os poderes do juiz na homologação), limita ainda mais a indenização por danos morais (fixando o teto do RGPS), reduz a correção monetária dos débitos trabalhistas, entre outras medidas “modernizantes”, que não passam de uma nova tentativa de esbulho sobre a classe trabalhadora, patrocinada exclusivamente pelos interesses empresariais das grandes corporações que dominam a pauta econômica do governo federal.
A plutocracia brasileira já está em alerta para o possível fim do governo Bolsonaro e quer correr para “passar a boiada” sobre os já combalidos direitos sociais dos trabalhadores brasileiros, ainda que para isso precise pisotear, mais uma vez, a Constituição de 1988.
Estou certo de que essas medidas contarão, mais cedo ou mais tarde, com o apoio da cúpula do Judiciário trabalhista, que as celebrará como uma grande necessidade da “revolução tecnológica 4.0”.
Fonte: Jota.
Autor: CÁSSIO CASAGRANDE – Doutor em Ciência Política, professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.
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